quarta-feira, 23 de março de 2011

VI DOMINGO TEMPO COMUM

* DOMINGO


«A vossa linguagem deve ser: ‘Sim, sim; não, não’»


LEITURA I – Sir 15, 16-21 (15-20)

Se quiseres, guardarás os mandamentos: ser-lhe fiel depende da tua vontade. Deus pôs diante de ti o fogo e a água: estenderás a mão para o que desejares. Diante do homem estão a vida e a morte: o que ele escolher, isso lhe será dado. Porque é grande a sabedoria do Senhor, Ele é forte e poderoso e vê todas as coisas. Seus olhos estão sobre aqueles que O temem, Ele conhece todas as coisas do homem. Não mandou a ninguém fazer o mal, nem deu licença a ninguém de cometer o pecado.

LEITURA II – 1 Cor 2, 6-10

Irmãos: Nós falamos de sabedoria entre os perfeitos, mas de uma sabedoria que não é deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que vão ser destruídos. Falamos da sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que já antes dos séculos Deus tinha destinado para a nossa glória. Nenhum dos príncipes deste mundo a conheceu; porque se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória. Mas, como está escrito, «nem os olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem jamais passou pelo pensamento do homem o que Deus preparou para aqueles que O amam». Mas a nós Deus o revelou por meio do Espírito Santo, porque o Espírito Santo penetra todas as coisas, até o que há de mais profundo em Deus.

EVANGELHO – Mt 5,17-37

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim revogar, mas completar. Em verdade vos digo: Antes que passem o céu e a terra, não passará da Lei a mais pequena letra ou o mais pequeno sinal, sem que tudo se cumpra. Portanto, se alguém transgredir um só destes mandamentos, por mais pequenos que sejam, e ensinar assim aos homens, será o menor no reino dos Céus. Mas aquele que os praticar e ensinar será grande no reino dos Céus. Porque Eu vos digo: Se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos Céus. Ouvistes que foi dito aos antigos: ‘Não matarás; quem matar será submetido a julgamento’. Eu, porém, digo-vos: Todo aquele que se irar contra o seu irmão será submetido a julgamento. Quem chamar imbecil a seu irmão será submetido ao Sinédrio, e quem lhe chamar louco será submetido à geena de fogo. Portanto, se fores apresentar a tua oferta sobre o altar e ali te recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar, vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão e vem depois apresentar a tua oferta. Reconcilia-te com o teu adversário, enquanto vais com ele a caminho, não seja caso que te entregue ao juiz, o juiz ao guarda, e sejas metido na prisão. Em verdade te digo: Não sairás de lá, enquanto não pagares o último centavo. Ouvistes que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém, digo-vos: Todo aquele que olhar para uma mulher desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração. Se o teu olho é para ti ocasião de pecado, arranca-o e lança-o para longe de ti, pois é melhor perder-se um dos teus membros do que todo o corpo ser lançado na geena. E se a tua mão direita é para ti ocasião de pecado, corta-a e lança-a para longe de ti, porque é melhor que se perca um dos teus membros, do que todo o corpo ser lançado na geena. Também foi dito: ‘Quem repudiar sua mulher dê-lhe certidão de repúdio’. Eu, porém, digo-vos: Todo aquele que repudiar sua mulher, salvo em caso de união ilegal, fá-la cometer adultério. Ouvistes que foi dito aos antigos: ‘Não faltarás ao que tiveres jurado, mas cumprirás os teus juramentos para com o Senhor’. Eu, porém, digo-vos que não jureis em caso algum: nem pelo Céu, que é o trono de Deus; nem pela terra, que é o escabelo dos seus pés; nem por Jerusalém, que é a cidade do grande Rei. Também não jures pela tua cabeça, porque não podes fazer branco ou preto um só cabelo. A vossa linguagem deve ser: ‘Sim, sim; não, não’. O que passa disto vem do Maligno».

Reflexão

Mateus tenta conciliar as tendências e as respostas dos vários grupos que, no contexto da sua comunidade cristã, eram dadas a estas questões. Na primeira parte do Evangelho que hoje nos é proposto (vers. 17-19), Mateus sustenta que Cristo não veio abolir essa Lei que Deus ofereceu ao seu Povo no Sinai. A Lei de Deus conserva toda a validade e é eterna; no entanto, é preciso encará-la, não como um conjunto de prescrições legais e externas, que obrigam o homem a proceder desta ou daquela forma rígida, no contexto desta ou daquela situação particular, mas como a expressão concreta de uma adesão total a Deus (adesão que implica a totalidade do homem, e que está para além desta ou daquela situação concreta). Dito de outra forma: os fariseus (que eram a corrente dominante no judaísmo pós-destruição de Jerusalém) tinham caído na casuística da Lei e achavam que a salvação passava pelo cumprimento de certas normas concretas; mas Mateus achava que a proposta libertadora de Jesus ia mais além e passava por assumir uma atitude interior de compromisso total com Deus e com as suas propostas.
Na segunda parte do texto que nos é proposto (vers. 20-37), Mateus refere quatro exemplos concretos desta nova forma de entender a Lei (na realidade, são seis os exemplos que aparecem no conjunto do texto mateano; mas o Evangelho de hoje só apresenta quatro; os outros dois ficam para o próximo domingo).
O primeiro (vers. 21-26) refere-se às relações fraternas. A Lei de Moisés exige, simplesmente, o não matar (cf. Ex 20,13; Dt 5,17); mas, na perspectiva de Jesus (que não se resume ao cumprimento estrito da letra da Lei, mas exige uma nova atitude interior), o não matar implica o evitar causar qualquer tipo de dano ao irmão… Há muitas formas de destruir o irmão, de o eliminar, de lhe roubar a vida: as palavras que ofendem, as calúnias que destroem, os gestos de desprezo que excluem, os confrontos que põem fim à relação. Os discípulos do “Reino” não podem limitar-se a cumprir a letra da Lei; têm que assumir uma nova atitude, mais abrangente, que os leve a um respeito absoluto pela vida e pela dignidade do irmão. A propósito, Mateus aproveita para apresentar à sua comunidade uma catequese sobre a urgência da reconciliação (o cortar relações com o irmão, afastá-lo da relação, marginalizá-lo, não é uma forma de matar?). Na perspectiva de Mateus, a reconciliação com o irmão deve sobrepor-se ao próprio culto, pois é uma mentira a relação com Deus de alguém que não ama os irmãos.
O segundo (vers. 27-30) refere-se ao adultério. A Lei de Moisés exige o não cometer adultério (cf. Ex 20,14; Dt 5,18); mas, na perspectiva de Jesus, é preciso ir mais além do que a letra da Lei e atacar a raiz do problema – ou seja, o próprio coração do homem… É no coração do homem que nascem os desejos de apropriação indevida daquilo que não lhe pertence; portanto, é a esse nível que é preciso realizar uma “conversão”. A referência a arrancar o olho que é ocasião de pecado (o olho é, nesta cultura, o órgão que dá entrada aos desejos) ou a cortar a mão que é ocasião de pecado (a mão é, nesta cultura, o órgão da acção, através do qual se concretizam os desejos que nascem no coração) são expressões fortes (bem ao gosto da cultura semita mas que, no entanto, não temos de traduzir à letra) para dizer que é preciso actuar lá onde as acções más do homem têm origem e eliminar, na fonte, as raízes do mal.
O terceiro (vers. 31-32) refere-se ao divórcio. A Lei de Moisés permite ao homem repudiar a sua mulher (cf. Dt 24,1); mas, na perspectiva de Jesus, a Lei tem de ser corrigida: o divórcio não estava no plano original de Deus, quando criou o homem e a mulher e os chamou a amarem-se e a partilharem a vida.
O quarto (vers. 33-37) refere-se à questão do julgamento. A Lei de Moisés pede, apenas, a fidelidade aos compromissos selados com um juramento (cf. Lv 19,12; Nm 20,3; Dt 23,22-24); mas, na perspectiva de Jesus, a necessidade de jurar implica a existência de um clima de desconfiança que é incompatível com o “Reino”. Para os que estão inseridos na dinâmica do “Reino”, deve haver um tal clima de sinceridade e confiança que os simples “sim” e “não” bastam. Qualquer fórmula de juramento é supérflua e sinal de corrupção da dinâmica do “Reino”.
A questão essencial é, portanto, esta: para quem quer viver na dinâmica do “Reino”, não chega cumprir estrita e casuisticamente as regras da Lei; mas é preciso uma atitude interior inteiramente nova, um compromisso verdadeiro com Deus que envolva o homem todo e lhe transforme o coração. 


* 2ª FEIRA - Anos Ímpares

Primeira leitura: Génesis 4, 1-15.25

Adão conheceu Eva, sua mulher. Ela concebeu e deu à luz Caim, e disse: «Gerei um homem com o auxílio do Senhor.» 2Depois, deu também à luz Abel, irmão de Caim. Abel foi pastor, e Caim, lavrador. 3Ao fim de algum tempo, Caim apresentou ao Senhor uma oferta de frutos da terra. 4Por seu lado, Abel ofereceu primogénitos do seu rebanho e as suas gorduras. O Senhor olhou com agrado para Abel e para a sua oferta, 5mas não olhou com agrado para Caim nem para a sua oferta. Caim ficou muito irritado e andava de rosto abatido. 6O Senhor disse a Caim: «Porque estás zangado e de rosto abatido? 7Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto; se procederes mal, o pecado deitar-se-á à tua porta e andará a espreitar-te. Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves dominá-lo.» 8Entretanto, Caim disse a Abel, seu irmão: «Vamos ao campo.» Porém, logo que chegaram ao campo, Caim lançou-se sobre o irmão e matou-o. 9O Senhor disse a Caim: «Onde está o teu irmão Abel?» Caim respondeu: «Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?» 10O Senhor replicou: «Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até mim. 11De futuro, serás amaldiçoado pela terra, que, por causa de ti, abriu a boca para beber o sangue do teu irmão. 12Quando a cultivares, não voltará a dar-te os seus frutos. Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra.» 13Caim disse ao Senhor: «A minha culpa é excessivamente grande para ser suportada. 14Expulsas-me hoje desta terra; obrigado a ocultar-me longe da tua face, terei de andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o primeiro a encontrar-me matar-me-á.» 15O Senhor respondeu: «Não! Se alguém matar Caim, será castigado sete vezes mais.» E o Senhor marcou-o com um sinal, a fim de nunca ser morto por quem o viesse a encontrar. 25Adão conheceu de novo a sua mulher, que teve um filho, e deu-lhe o nome de Set, dizendo: «Porque Deus concedeu-me outro no lugar de Abel, morto por Caim.»

Evangelho: Marcos 8, 11-13

Naquele tempo, apareceram alguns fariseus e começaram a discutir com Ele, pedindo-lhe um sinal do céu para o pôr à prova. 12Jesus, suspirando profundamente, disse: «Porque pede esta geração um sinal? Em verdade vos digo: sinal algum será concedido a esta geração.» 13E, deixando-os, embarcou de novo e foi para a outra margem.

Reflexão

A primeira leitura, que nos fala do sacrifício de Abel, prepara-nos para compreendermos o sacrifício de Jesus, que já entrevemos na hostilidade dos fariseus de que nos fala o evangelho.
Segundo os exegetas, Abel, em hebraico, significa “sopro”, “vapor”, “vaidade”. É um nome que indica a precariedade, a fragilidade da existência humana. O Filho de Deus também assumiu essa fragilidade. Abel é a primeira vítima inocente da história. O seu sangue derramado grita por vingança diante de Deus. Segundo a Lei, a morte do inocente só pode ser espiada com a morte do homicida: «o sangue mancha a terra e a terra só pode ser lavada dessa mancha com o sangue daquele que o tiver derramado» (Nm 35, 33). Jesus também é uma vítima inocente. O seu sangue foi derramado, como o de Abel, por causa do ódio dos seus irmãos. Judas reconhece a inocência de Jesus: «Atraiçoei sangue inocente» (Mt 27, 4). Há pois certa semelhança entre o sacrifício de Abel e o de Jesus. Segundo o Cânon romano, o sacrifício de Abel é uma prefiguração do sacrifício de Jesus. Mas a Carta aos Hebreus realça a diferença que também existe entre os dois, entre o sangue de Jesus e o sangue de Abel. O sangue de Abel grita vingança. Caim será expulso da terra que bebeu o sangue do seu irmão. Mas não será morto. Quem o poderia fazer? Andará fugitivo e vagabundo toda a vida, mas com um sinal da protecção de Deus. O sangue de Jesus é «mais eloquente que o sangue de Abel» (Heb 12, 24). Porquê? Porque o sangue de Jesus não se limita a clamar por vingança, por justiça, mas oferece a todos o perdão e a salvação.
S. João, na sua primeira carta, escreve: «Caim, que era do Maligno, assassinou o seu irmão. E porque o assassinou? Porque as suas obras eram más, ao passo que as do irmão eram boas.» (1 Jo 3, 12). O motivo que levou Caim a assassinar o seu irmão foi a malícia, a maldade. O inocente é morto pelo malvado porque faz o bem. Assim aconteceu com Jesus. Assim pode acontecer também com os discípulos de Jesus, que não devem espantar-se com o ódio do mundo.
O autor da Carta aos Hebreus também mostra que Abel, já morto, continua a ser figura de Cristo ressuscitado: «A voz do sangue do teu irmão clama da terra até mim» (v. 10). Portanto, de algum modo, continua vivo. Quando se fala de Cristo, a voz do seu sangue é anda mais forte, «mais eloquente». O sangue de Jesus grita a sua ressurreição. Grita amor e misericórdia.
O episódio do sacrifício de Abel termina com o nascimento de Set. «Deus concedeu-me outro no lugar de Abel, morto por Caim» - exclama Adão. Os Padres da Igreja vêem nestas palavras uma alusão a Cristo Ressuscitado. Deus, já desde o princípo, entrevê o seu projecto de salvação, a vitória sobre a morte e sobre o mal, que será oferecida ao homem por Jesus morto e ressuscitado. 


* 3ª FEIRA - Anos Ímpares

Primeira leitura: Génesis 6, 5-8; 7, 1-5.10

O Senhor reconheceu que a maldade dos homens era grande na Terra, que todos os seus pensamentos e desejos tendiam sempre e unicamente para o mal. 6O Senhor arrependeu-se de ter criado o homem sobre a Terra, e o seu coração sofreu amargamente. 7E o Senhor disse: «Eliminarei da face da Terra o homem que Eu criei, e, juntamente com o homem, os animais domésticos, os répteis e as aves dos céus, pois estou arrependido de os ter feito.» 8Noé, porém, era agradável aos olhos do Senhor. 1O Senhor disse, depois, a Noé: «Entra na arca, tu e toda a tua família, porque só a ti reconheci como justo nesta geração. 2De todos os animais puros levarás contigo sete pares, o macho e a fêmea; dos animais que não são puros levarás um par, o macho e a sua fêmea; 3das aves do céu, também sete pares, macho e fêmea, a fim de conservares a sua raça viva sobre a Terra. 4Porque dentro de sete dias, vou mandar chuva sobre a Terra, durante quarenta dias e quarenta noites, e exterminarei na superfície de toda a Terra todos os seres que Eu criei.» 5E Noé cumpriu tudo quanto o Senhor lhe ordenara. 10Ao cabo de sete dias, as águas do dilúvio submergiram a Terra.

Evangelho: Marcos 8, 14-21

Naquele tempo, 14os discípulos tinham-se esquecido de levar pães e só traziam um pão no barco. 15Jesus começou a avisá-los, dizendo: «Olhai: tomai cuidado com o fermento dos fariseus e com o fermento de Herodes.» 16E eles discorriam entre si: «Não temos pão.» 17Mas Ele, percebendo-o, disse: «Porque estais a discorrer que não tendes pão? Ainda não entendestes nem compreendestes? Tendes o vosso coração endurecido? 18Tendes olhos e não vedes, tendes ouvidos e não ouvis? E não vos lembrais 19de quantos cestos cheios de pedaços recolhestes, quando parti os cinco pães para aqueles cinco mil?» Responderam: «Doze.» 20«E quando parti os sete pães para os quatro mil, quantos cestos cheios de bocados recolhestes?» Responderam: «Sete.» 21Disse-lhes então: «Ainda não compreendeis?»

Reflexão

O coração é o lugar onde se formam os pensamentos e se concebem as acções. Ao iniciar o relato do dilúvio, o autor sagrado avança logo a causa de tal desgraça: «O Senhor reconheceu que a maldade dos homens era grande na Terra, que todos os seus pensamentos e desejos tendiam sempre e unicamente para o mal.» (v. 5). Literalmente o texto de Gn 6, 5 diz: «Toda a formação dos pensamentos do seu coração era somente mal todo o dia». A maldade do coração do homem provoca o desencanto e o sofrimento no coração de Deus: «O Senhor arrependeu-se de ter criado o homem sobre a Terra, e o seu coração sofreu amargamente.» (v. 6). O Senhor decide eliminar o homem, e todos os seres vivos, da face da terra. Mas o seu coração não Lhe permite executar completamente uma decisão tão radical e encontra logo um remédio para salvar a humanidade: «Noé, porém, era agradável aos olhos do Senhor» (v. 8). E Deus encarrega-o de construir a arca da salvação.
A história de Noé prefigura a história de Jesus e revela, desde o princípio, a táctica divina, que se compraz em usar instrumentos humildes e quase insignificantes, como Noé e a barca, para salvar a humanidade. Assim acontecerá com a eleição do povo de Israel, pequeno e fraco no meio das nações, mas escolhido por Deus para mediar a salvação do mundo. Quando Israel falha na sua vocação e missão, Deus abandona-o, reservando apenas uma pequena parte desse povo, o reino de Judá. Quando também Judá se torna infiel, Deus entrega-o ao saque dos Assírios e deixa-o ser levado cativo pelos Babilónios. Mas, ainda assim, o Senhor consegue encontrar no meio desse povo alguns justos, que serão o começo de um povo novo, humilde e berço da salvação. É dessas poucas pessoas que permaneceram fiéis que Deus fará nascer o seu Filho. E a táctica de Deus continua até ao fim. Quando, na paixão de Jesus, tudo se tornou mau, e o próprio Jesus está como que submerso pelo pecado de todos, o seu Coração permanece aquele «pequeno resto» fiel por meio do qual Deus salva o mundo. Esse Coração, morto e e trespassado na cruz, ressuscita ao terceiro dia, manifestando a nossa salvação: Jesus, o único justo, salva o mundo inteiro! É a táctica de Deus!
Essa mesma táctica se manifesta no evangelho. Aos inquietos discípulos com a falta de mantimentos, Jesus lembra a multiplicação dos pães: «Não vos lembrais de quantos cestos cheios de pedaços recolhestes, quando parti os cinco pães para aqueles cinco mil?» (vv. 18-19). Importante, importante não é ter muitas coisas, mas ter «o pão de Deus», isto é, Jesus! 


* 4ª FEIRA - Anos Ímpares

Primeira leitura: Génesis 8, 6-13.20-22

Decorridos quarenta dias, Noé abriu a janela que havia feito na arca 7e soltou o corvo, que saiu repetidas vezes, enquanto iam secando as águas sobre a terra. 8Depois, soltou a pomba, a fim de verificar se as águas tinham diminuído à superfície da terra. 9Mas, não tendo encontrado sítio para poisar, a pomba regressou à arca, para junto dele, pois as águas cobriam ainda a superfície da terra. Estendeu a mão, agarrou a pomba e meteu-a na arca. 10Aguardou mais sete dias; depois soltou novamente a pomba, 11que voltou para junto dele, à tarde, trazendo no bico uma folha verde de oliveira. Noé soube, então, que as águas sobre a terra tinham baixado. 12Aguardou ainda outros sete dias; depois tornou a soltar a pomba, mas, desta vez, ela não regressou mais para junto dele.13No ano seiscentos e um, no primeiro dia do primeiro mês, as águas começaram a secar sobre a terra. Noé abriu o tecto da arca e viu que a superfície da terra estava seca. 20Noé construiu um altar ao Senhor e, de todos os animais puros e de todas as aves puras, ofereceu holocaustos no altar. 21O Senhor sentiu o agradável odor e disse no seu coração: «De futuro, não amaldiçoarei mais a terra por causa do homem, pois as tendências do coração humano são más, desde a juventude, e não voltarei a castigar os seres vivos, como fiz. 22Enquanto subsistir a terra, haverá sempre a sementeira e a colheita, o frio e o calor, o Verão e o Inverno, o dia e a noite.»

Evangelho: Marcos 8, 22-26

Naquele tempo, Jesus e os seus discípulos chegaram a Betsaida e trouxeram-lhe um cego, pedindo-lhe que o tocasse. 23Jesus tomou-o pela mão e conduziu-o para fora da aldeia. Deitou-lhe saliva nos olhos, impôs-lhe as mãos e perguntou: «Vês alguma coisa?» 24Ele ergueu os olhos e respondeu: «Vejo os homens; vejo-os como árvores a andar.» 25Em seguida, Jesus impôs-lhe outra vez as mãos sobre os olhos e ele viu perfeitamente; ficou restabelecido e distinguia tudo com nitidez. 26Jesus mandou-o para casa, dizendo: «Nem sequer entres na aldeia.»

Reflexão

O dilúvio termina gradualmente, à medida que as águas vão secando. Noé procura conhecer a situação da terra, soltando repetidas vezes uma pomba. Quando ela volta trazendo no bico um raminho de oliveira, compreende, e nós também compreendemos, que a misericórdia prevaleceu sobre o juízo, e que a terra é de novo habitável. A pomba, com o ramo de oliveira no bico, torna-se um símbolo de paz.
Causa-nos espanto a simplicidade com que Deus muda a sua decisão: «De futuro, não amaldiçoarei mais a terra… e não voltarei a castigar os seres vivos, como fiz» (v. 21). Noutro passo da Escrituras diz-se que Deus nunca se arrepende, que não é um homem, para mudar de opinião. Os filósofos insistem nesta imutabilidade de Deus: sendo perfeição absoluta, Deus não pode mudar. Esta contradição não deriva das limitações de Deus, mas das nossas. Não somos capazes de compreender a Deus. Se o compreendermos, deixará de ser Deus, como diz Santo Agostinho. Precisamos até de juntar coisas contraditoras para fazermos uma ideia menos imperfeita de Deus. Insistir na imutabilidade de Deus, como os filósofos, leva-nos a uma ideia mais empobrecida de Deus, que seria, para nós, semelhante a um monte de pedras, que não se move, não tem sentimentos, não vive. Se lermos com simplicidade a Bíblia, vemos que Deus pensa, tem sentimentos, ama profundamente, ira-se com os pecados do povo, muda as suas decisões… E ficamos com a ideia de um ser vivo, cheio de movimento e de riqueza, o que é mais verdadeiro do que a ideia dos filósofos. A Bíblia, por vezes, também fala de Deus como imutável. Mas geralmente mostra-nos um Deus semelhante a nós. A perfeição divina é plenitude e não imobilidade. A imobilidade de Deus encerra todos os movimentos. Deus não tem emoções humanas, mas está acima delas. Não ama como nós, mas ama mais do que nós. Ama de um modo que não podemos compreender.
A humanidade de Jesus revela-nos plenamente o modo de ser e de reagir de Deus. Revela-nos o Coração de Jesus. Jesus, verdadeiro homem, sofreu, amou, reflectiu, fez projectos de vida, foi enganado e traído. Actuou com a simplicidade e a humildade que nos mostra o evangelho de hoje, na cura do cego de Betsaida. Jesus leva-o para fora da cidade, põe-lhe saliva nos olhos, impõe-lhe as mãos e pergunta-lhe: «Vês alguma coisa?» (v. 23). Parece que o milagre ficou a meio, pois o homem afirma: «Vejo os homens; vejo-os como árvores a andar» (v. 24). Então, impõe-lhe as mãos e o milagre completa-se. O cego «distinguia tudo com nitidez» (v. 25).
O modo humilde e progressivo como Jesus cura o cego de Betsaida ensina-nos que, na vida espiritual, precisamos de muita paciência. Não podemos estar à espera de resultados imediatos. A nossa compreensão da misericórdia divina avança ao ritmo da nossa cura, que Ele mesmo realiza, com muita paciência. 


* 5ª FEIRA - Anos Ímpares

Primeira leitura: Génesis 9, 1-13

Deus abençoou Noé e os seus filhos, e disse-lhes: «Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra. 2Sereis temidos e respeitados por todos os animais da terra, por todas as aves do céu, por tudo quanto rasteja sobre a terra e por todos os peixes do mar; ponho-os à vossa disposição. 3Tudo o que se move e tem vida servir-vos-á de alimento; dou-vos tudo isso como já vos tinha dado as plantas verdes. 4Porém, não comereis a carne com a sua vida, o sangue. 5Ficai também a saber que pedirei contas do vosso sangue a todos os animais, por causa das vossas vidas; e ao homem, igualmente, pedirei contas da vida do homem, seu irmão. 6A quem derramar o sangue do homem, pela mão do homem será derramado o seu, porque Deus fez o homem à sua imagem. 7Quanto a vós, sede fecundos e multiplicai-vos; espalhai-vos pela Terra e multiplicai-vos sobre ela.» 8A seguir, Deus disse a Noé e a seus filhos: 9«Vou estabelecer a minha aliança convosco, com a vossa descendência futura 10e com os demais seres vivos que vos rodeiam: as aves, os animais domésticos, todos os animais selvagens que estão convosco, todos aqueles que saíram da arca. 11Estabeleço convosco esta aliança: não mais criatura alguma será exterminada pelas águas do dilúvio e não haverá jamais outro dilúvio para destruir a Terra.» 12E Deus acrescentou: «Este é o sinal da aliança que faço convosco, com todos os seres vivos que vos rodeiam e com as demais gerações futuras: 13coloquei o meu arco nas nuvens, para que seja o sinal da aliança entre mim e a Terra.

Evangelho: Marcos 8, 27-33

Naquele tempo, Jesus partiu com os discípulos para as aldeias de Cesareia de Filipe. No caminho, fez aos discípulos esta pergunta: «Quem dizem os homens que Eu sou?» 28Disseram-lhe: «João Baptista; outros, Elias; e outros, que és um dos profetas.» 29«E vós, quem dizeis que Eu sou?» - perguntou-lhes. Pedro tomou a palavra, e disse: «Tu és o Messias.» 30Ordenou-lhes, então, que não dissessem isto a ninguém. 31Começou, depois, a ensinar-lhes que o Filho do Homem tinha de sofrer muito e ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos doutores da Lei, e ser morto e ressuscitar depois de três dias. 32E dizia claramente estas coisas. Pedro, desviando-se com Ele um pouco, começou a repreendê-lo. 33Mas Jesus, voltando-se e olhando para os discípulos, repreendeu Pedro, dizendo-lhe: «Vai-te da minha frente, Satanás, porque os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens.»

Reflexão

O texto do Génesis, que hoje escutamos, lembra-nos a aliança universal estabelecida por Deus com Noé e com toda a humanidade depois do dilúvio. O arco-íris é o sinal dessa aliança. A segunda aliança é celebrada com Abraão e os seus descendentes, os israelitas, os ismaelitas, os edomitas, e outras famílias descendentes do patriarca. A circuncisão é o sinal dessa aliança (cf. Gn 17). Mas o círculo vai-se apertando. No Sinai, a aliança é celebrada com o povo de Israel, e tem como sinal o sábado (cf. Ex 31). São passos progressivos, um depois do outro, que não invalidam os anteriores. Finalmente a aliança concentra-se num só homem, um filho de Israel de quem depende a fidelidade de Deus a todas as outras alianças: é a aliança divídica-messiânica que, para nós cristãos tem como sinal a cruz de Jesus. Quando, como Pedro, dizemos: «Tu és o Messias» (v. 29), havemos de ter em conta a extrema particularidade da figura messiânica e, simultaneamente, da sua máxima universalidade, por ser o ponto de convergência da aliança de Deus com Israel, mas também com toda a humanidade. Graças a Jesus, e à sua cruz, a aliança de Deus com todos os homens permanece e renova-se. Por isso, reconheçamos, por palavras e obras, que Jesus é o arco-íris luminoso e definitivo, erguido na cruz, no qual o céu e a terra, e tudo quanto existe, é reconciliado.
A nossa resposta ao amor criador e re-criador de Deus, a resposta à aliança consumada em Jesus, na sua cruz e ressurreição, a resposta ao “amor do Coração de Jesus” (Cst 1956 I, 2, parágrafo 2) há-de concretizar no exercício do carisma profético do amor e da reconciliação: “profetas do amor... servidores da reconciliação” (Cst. 7). 


* 6ª FEIRA - Anos Ímpares

Primeira leitura: Génesis 11, 1-9

Em toda a Terra, havia somente uma língua, e empregavam-se as mesmas palavras. 2Emigrando do oriente, os homens encontraram uma planície na terra de Chinear e nela se fixaram. 3Disseram uns para os outros: «Vamos fazer tijolos, e cozamo-los ao fogo.» Utilizaram o tijolo em vez da pedra, e o betume serviu-lhes de argamassa. 4Depois disseram: «Vamos construir uma cidade e uma torre, cujo cimo atinja os céus. Assim, havemos de tornar-nos famosos para evitar que nos dispersemos por toda a superfície da Terra.» 5O Senhor, porém, desceu, a fim de ver a cidade e a torre que os homens estavam a edificar. 6E o Senhor disse: «Eles constituem apenas um povo e falam uma única língua. Se principiaram desta maneira, coisa nenhuma os impedirá, de futuro, de realizarem todos os seus projectos. 7Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a linguagem deles que não consigam compreender-se uns aos outros.» 8E o Senhor dispersou-os dali por toda a superfície da Terra, e suspenderam a construção da cidade. 9Por isso, lhe foi dado o nome de Babel, visto ter sido lá que o Senhor confundiu a linguagem de todos os habitantes da Terra, e foi também dali que o Senhor os dispersou por toda a Terra.

Evangelho: Marcos 8, 34 – 9, 1

Naquele tempo, Jesus, chamando a si a multidão, juntamente com os discípulos, disse-lhes: «Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. 35Na verdade, quem quiser salvar a sua vida, há-de perdê-la; mas, quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, há-de salvá-la. 36Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida? 37Ou que pode o homem dar em troca da sua vida? 38Pois quem se envergonhar de mim e das minhas palavras entre esta geração adúltera e pecadora, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai, com os santos anjos.» 1Disse-lhes também: «Em verdade vos digo que alguns dos aqui presentes não experimentarão a morte sem terem visto o Reino de Deus chegar em todo o seu poder.»

Reflexão

Os homens, reunidos no vale de Chinear, querem construir uma cidade e uma torre. Provavelmente não querem desafiar a Deus, chegar ao céu. Querem evitar, a todo o custo, a dispersão, porque temem o novo, o diferente, o original. Querem refugiar-se no que lhes é familiar, sempre igual, seguro. Tem medo que a dispersão lhes traga a morte. Querem «tornar-se famosos» para fugirem à morte, para salvarem a própria vida. Deixam-se levar pelo instinto da sobrevivência, pelo instinto do domínio sobre os outros. Querem «salvar a própria vida», como dirá Jesus. Mas é mesmo a dispersão, o dar a vida, que entram no projecto salvífico de Deus. A fama e o poder não passam de um mísero antídoto contra a morte. Não só a não evita, mas aumenta-lhe as dimensões, tornando-as cada vez mais assustadoras. A grandeza do «nome», a fama, apenas aumenta o poder da morte. Jesus ensina aos discípulos esta verdade paradoxal: «Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida?» (Mc 8, 36). Que benefícios trazem para os homens as grandes realizações, as empresas gigantescas, as torres de Babel de todas as gerações, se o preço a pagar por elas é a perda da integridade pessoal, e a total desorientação diante da morte? A vocação original do homem está em fazer comunhão na diferença, no fecundo abandono ao projecto inicial de Deus. Por isso é que Deus não pode aceitar iniciativas como as de Babel. Quando o homem quer salvar a sua vida, perde-a. Quando é capaz de a dar, de renegar a si mesmo, salva-a.
Todos queremos afirmar-nos diante dos outros. Por isso, temos dificuldade em aceitar que a verdadeira afirmação passa por se perder, por se entregar por amor. Entregar-se por amor, implica, muitas vezes renegar a si mesmo, Não é conquistá-lo, dominá-lo, mas acolhê-lo com humildade, tal como é.
Perante a reacção dos outros dez apóstolos contra os dois irmãos, para quem a mulher de Zebedeu pedia privilégios, Jesus esclarece que a verdadeira grandeza está em servir, que a Sua missão e a deles é uma missão de entrega, de serviço desinteressado: «Quem quiser ser grande entre vós faça-se vosso servo, e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se escravo de todos. Porque o Filho do Homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por todos» (Mc 10, 43-45). 


* SÁBADO - Anos Ímpares

Primeira leitura: Hebreus 11, 1-7

Irmãos: A fé é garantia das coisas que se esperam e certeza daquelas que não se vêem. 2Foi por ela que os antigos foram aprovados. 3Pela fé, sabemos que o mundo foi organizado pela palavra de Deus, de modo que o que se vê provém de coisas não visíveis. 4Pela fé, Abel ofereceu a Deus um sacrifício maior que o de Caim; com base nela, foi declarado justo, porque Deus aceitou os seus dons e, por meio dela, fala ainda depois da morte. 5Pela fé, Henoc foi arrebatado, para não ver a morte, e não foi encontrado porque Deus o tinha levado. Porém, antes de ser levado, obtivera o testemunho de que tinha agradado a Deus. 6Ora, sem a fé é impossível agradar-lhe; e quem se aproxima de Deus tem de acreditar que Ele existe e recompensa aqueles que o procuram. 7Pela fé, Noé, avisado acerca de coisas que ainda se não viam, e, tomando o aviso a sério, construiu uma Arca para salvar a sua família; por essa fé, condenou o mundo e tornou-se herdeiro da justiça que se obtém pela fé.

Evangelho: Marcos 9, 2-13

Naquele tempo, Jesus, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e levou-os, só a eles, a um monte elevado. E transfigurou-se diante deles. 3As suas vestes tornaram-se resplandecentes, de tal brancura que lavadeira alguma da terra as poderia branquear assim. 4Apareceu-lhes Elias, juntamente com Moisés, e ambos falavam com Ele. 5Tomando a palavra, Pedro disse a Jesus: «Mestre, bom é estarmos aqui; façamos três tendas: uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias.» 6Não sabia que dizer, pois estavam assombrados. 7Formou-se, então, uma nuvem que os cobriu com a sua sombra, e da nuvem fez-se ouvir uma voz: «Este é o meu Filho muito amado. Escutai-o.» 8De repente, olhando em redor, já não viram ninguém, a não ser só Jesus, com eles. 9Ao descerem do monte, ordenou-lhes que a ninguém contassem o que tinham visto, senão depois de o Filho do Homem ter ressuscitado dos mortos. 10Eles guardaram a recomendação, discutindo uns com os outros o que seria ressuscitar de entre os mortos.11E fizeram-lhe esta pergunta: «Porque afirmam os doutores da Lei que primeiro há-de vir Elias?» 12Jesus respondeu-lhes: «Sim; Elias, vindo primeiro, restabelecerá todas as coisas; porém, não dizem as Escrituras que o Filho do Homem tem de padecer muito e ser desprezado? 13Pois bem, digo-vos que Elias já veio e fizeram dele tudo o que quiseram, conforme está escrito.»

Reflexão

O autor da Carta aos Hebreus vê a fé em todas as páginas do Antigo Testamento. Depois de nos dar uma definição muito sintética e sugestiva da mesma fé, faz desfilar diante de nós, como exemplo e como estímulo, uma série de figuras e protagonistas da história da salvação. «A fé é garantia das coisas que se esperam e certeza daquelas que não se vêem» (v. 1), afirma o autor. É o fundamento consistente de tudo: do sacrifício de Abel, do arrebatamento de Henoch – que é figura da ressurreição de Cristo – e da salvação de Noé, que, pela fé na palavra de Deus, construiu uma arca de salvação para a sua família. Tudo tem fundamento na fé. Pela fé, tornam-se desde já actuais, ainda que de modo imperfeito, as coisas esperadas. A fé permite ver mesmo aquilo que não se vê, ainda que de modo enigmático, como num espelho.
A definição da fé como garantia e como certeza, ou, se preferirmos, como fundamento e como prova das coisas que se esperam, é importante para compreendermos o mistério da transfiguração de Jesus. De facto, na transfiguração de Jesus, a glória futura, a glória esperada, é já possuída, por uma singularíssima antecipação. E as realidades invisíveis, como a contemporaneidade de Moisés, Elias e Jesus no reino dos céus, tornam-se experienciáveis. Mas, tudo isto, na fé de Jesus, e também na nossa. Na vida dos discípulos, como na do Mestre, podem dar-se antecipações da glória a que estamos destinados, momentos de real experiência das coisas invisíveis. Tudo depende da graça de Deus e da nossa fé. Podem ser apenas cintilas de luz. Mas serão suficientes para esclarecer tantas dúvidas, para iluminar toda a nossa existência, até ao momento de vermos as coisas que ainda não vemos, e estarmos certos daquelas que esperamos.
Segundo o autor da Carta aos Hebreus, Jesus é o «autor e consumador da fé» (12, 2). Na Transfiguração, a visão esplendorosa de Jesus, luz do mundo que tudo ilumina, enche Pedro, Tiago e João, de uma felicidade que jamais tinham experimentado, e deu maior consistência à sua fé em Jesus. As cintilações do Senhor, em determinados momentos da nossa vida, fazem-nos sentir a mesma alegria indescritível e irradiante de que fala Pedro (1 Pe 1, 8), e dão apoio à nossa fé no Senhor. Apoiados em Jesus, podemos estar em comunhão com Pai, em verdadeiro amor. Sem o fundamento da fé em Jesus, o nosso amor é vão. Se pretendemos caminhar para a perfeição, sem nos apoiarmos em Jesus, jamais a alcançaremos: «Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me» (Mt 19, 21).

Ricardo Igreja

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